Breve olhar sobre a gratuidade da Justiça
Existe Justiça gratuita?
A Justiça no Brasil, em muitas situações, nunca foi
barata e de fácil acesso, na prática. O carente de recursos que a ela recorre sempre
teve que se esforçar para vencer as “cláusulas de barreiras” impostas pela lei,
relacionadas a exigências de comprovação de ausência de condições de pagamento
de custas e despesas processuais, como requisito prévio de acesso.
Ao contrário do que ocorre em muitíssimos casos, o Estado
deveria ampliar e efetivamente facilitar a busca de direitos pelos
particulares, considerando que há tempos avocou para si o monopólio do
exercício de resolução de conflitos de interesses que surgem por decorrência do
viver em sociedade, proibindo, por consequência, a justiça feita pelas próprias
mãos dos envolvidos nos referidos conflitos. Ora, se o Estado é o único
legitimado a dizer de que lado está o direito, deveria abrir as portas
especialmente àqueles com menos recursos financeiros para tanto.
Cumpre esclarecer que a gratuidade de justiça é um instituto processual que permite
isenção no pagamento de custas processuais, e está expressamente prevista no
art. 98, § 1º, do Código de Processo Civil, e pode ser pleiteada ao juiz tanto
no momento inicial da ação quanto no curso da demanda, entretanto, condicionada
à existência e manutenção do estado de hipossuficiência do postulante, podendo,
aliás, ser revogada a concessão a qualquer tempo, caso não se mantenha a citada
condição.
É muito ampla e discrepante a faixa de
valores de custas processuais, tanto no que se refere aos diferentes atos
processuais a serem praticados, quanto no que diz respeito à tabela de valores
que os tribunais de cada estado fixam.
Fato é que muitos têm seu pedido de
gratuidade da justiça indeferido de plano pelo juiz, porque não conseguem
comprovar que não possuem recursos suficientes para pagar as referidas custas
processuais, o que, em princípio, não se coaduna com o que estabelece o art. 99,
§ 2º, do Código de Processo Civil, dispositivo que determina que o juiz da
causa precisa fundamentar a decisão que eventualmente indefira o pedido de
gratuidade, o que somente pode ocorrer na falta dos pressupostos legais para a concessão de gratuidade.
Com o rigor, não raras vezes, excessivo por parte de
alguns magistrados, o qual não se harmoniza com a exigência de simples
declaração do postulante, prevista no art. 99, § 3º, do CPC, para muitas
pessoas de baixa renda fica inviabilizado o acesso ao Judiciário.
Infelizmente, para fazer valer seus direitos, essas
pessoas mais carentes de recursos financeiros são as que mais precisam da
tutela do Poder Judiciário, por incrível paradoxo do sistema. E neste contexto,
elas têm deixado de recorrer à Justiça, ou adiado essa possiblidade, pois, para
um juiz com pouca experiência de vida ou reduzido conhecimento da realidade
fora de seu gabinete, pode parecer que tais pessoas possam ter condições de
pagar as custas, mas isso somente seria viável com o risco de sacrifício de sua
própria subsistência, especialmente em tempos de desemprego em massa e de crise
para todo lado.
Em síntese, não dá para sacrificar os dedos com a
finalidade de salvar os anéis! Eis o claro paradoxo já mencionado.
A realidade das pessoas desempregadas ou com renda mensal
próxima de um salário mínimo de fome (pouco mais de R$ 900,00), muito diversa
dos que recebem remuneração mensal entre R$ 27.500,00 e RS 33.700,00 (faixa aproximada
de subsídio de juiz de primeiro grau e ministro), é de esmagar sonhos (e também
a própria realidade), pois essa “renda” fica praticamente toda comprometida com
pagamento das despesas com itens básicos para sobrevivência, ou seja, alimentos,
remédios, transporte, aluguel etc, sem falar de outras despesas, quando eventualmente
há sobra no orçamento, como materiais
para a escola dos filhos, empréstimos (para correr atrás de outras dívidas).
Então, de maneira genérica e mais clara,
funciona mais ou menos assim: se você
tem como pagar as custas do processo a Justiça está ao seu alcance; do
contrário não. Isso, evidentemente, não se coaduna com o postulado
constitucional de acesso amplo ao Poder Judiciário (CF, art. 5º, inc. XXXV).
Nem se pode aventar a hipótese de exigência de procura da
Defensoria Pública (não se deve confundir justiça gratuita com assistência
judiciária gratuita – essa última prevista nos arts. 134 e 5º, inc. LXXIV, da
Constituição), porque uma coisa não está ligada obrigatoriamente à outra. Ou
seja, para obter a gratuidade da Justiça não há impedimento de contratação de
advogado privado.
Numa leitura rápida da situação, parece
que a lei dá com uma mão e o rigor excessivo de alguns juízes retiram com a outra,
especialmente aquele menos consciente das condições de vida de boa parcela dos
brasileiros, pois aplicar com rigor a norma alusiva à prova de ausência de
condições para pagar as custas e despesas do processo significa vendar seus
próprios olhos à condição de penúria dos necessitados.
Para que não se faça da previsão
constitucional e legal de proteção aos mais carentes mera letra morta, dispositivos
legais que, na prática, procuram dar efetividade ao princípio da isonomia, há
necessidade de uma visão mais humanística (e realista) por parte do magistrado,
que precisa sair de sua costumeira posição privilegiada, no tocante ao valor
mensal de seu subsídio, para num gesto quase de humildade e compaixão,
colocar-se no lugar do outro, pois somente a alteridade permite alcançar o
ponto de vista alheio (é literalmente a vista de um outro ponto, análise da
situação concreta sob outro prisma).
Em tese, qualquer um
que participe de um processo judicial, tanto como autor quanto réu, ou mesmo
interveniente, pode se beneficiar da gratuidade de justiça, após passar pela formalidade
inicial de comprovação de que não tem como pagar as custas.
Com a entrada em
vigor do atual Código de Processo Civil, ao que tudo indica, ficou menos subjetiva
a análise judicial da alegação de insuficiência de recursos para o fim aqui
tratado, mas, ainda assim, alguns magistrados não têm se mostrado sensíveis à
penúria que ainda grassa sobre a população brasileira, situação notória já há
alguns anos.
Para alguns necessitados da tutela, desprovidos de
conhecimento, soa como se o Estado-Juiz, no caso o Judiciário, estivesse ainda menos
preocupados com a efetividade da prestação jurisdicional, previsto na Carta da
República art. 5º, LXXIV, da Constituição da
República que assegura que “o
Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem
insuficiência de recursos”.
A negativa de concessão da gratuidade, infelizmente, não pode
servir para fechá-la! Daí a inadiável necessidade de bom senso e ponderação
quando da apreciação do pedido de concessão do referido benefício processual.
Ora, apesar da competência específica
da Defensoria Pública, a que se refere esse dispositivo constitucional tão
importante, não se pode olvidar o propósito teleológico e a interpretação
sistemática da expressão “assistência jurídica gratuita”, que precisa englobar
também a gratuidade da justiça, que obviamente pode ser concedida também
àqueles que contratam advogado particular.
O que se vê, infelizmente,
na contramão da história e em confronto com os aspectos sociológicos atuais, é
um Judiciário cada vez mais rigoroso e menos preocupado com a realidade do
povo, eis que se torna mais difícil o cidadão conseguir ser agraciado com a concessão
do benefício da gratuidade da justiça.
O artigo 99, § 3°, do CPC, que presume “verdadeira a
alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoal natural”, está
bem longe de se tornar realidade em boa parte das lides forenses, pois não basta
alegar, sendo necessário uma verdadeira exposição da vida financeira do
demandante/demandado no intuito de tentar sensibilizar um judiciário que parece
estar vestido com togas de aço e martelo de ferro.
Não se cuida de
defender qualquer tipo de burla ao importante instituto processual aqui
referido, até porque é lícito ao juiz indeferir o pedido quando dos autos
restar demonstrada a inverdade da alegação de insuficiência de recursos, e pode
fazê-lo de ofício ou mediante provas trazidas pela parte processual contrária.
Não é
absolutamente isso o que se defende aqui, mas uma postura menos dura e
inflexível do juiz, mais humana e “pé no chão”.
Para concluir, a meu
ver é necessário que haja uma mudança na mentalidade dos operadores do direito,
em especial do juiz que frequentemente dificulta ou denega a concessão dos
benefícios da gratuidade de justiça, muitas vezes baseado em parâmetros de
renda que na maioria das vezes não correspondem à realidade socioeconômica do
postulante. Não se trata
propriamente de provar a hipossuficiência em termos numéricos absolutos, mas de
valorar a condição financeira do peticionante, relativamente às suas
necessidades de primeira ordem.
O
objetivo deste artigo, ainda que de forma tímida, é reivindicar aos cidadãos em
dificuldade financeira o efetivo aceso à Justiça, de forma gratuita, isentando-os
do pagamento de custas processuais como prévio requisito para ingresso ao Judiciário,
visto que essa exigência, tomada em seu mais elevado rigor, distancia-se da
atual realidade brasileira e inibe a concretização da real função da Justiça,
distante, portanto, da necessária isonomia.
Sobre a autora:
Gisele Nascimento,
Advogada em Mato Grosso, sócia do escritório Alves, Barbosa e Nascimento
Advogados Associados.
Especialista em
Direito Civil e Processo Civil e pós-graduanda em Direito do Consumidor.
Membro da Comissão de
Defesa da Mulher OAB/MT.
Contato no Instagram: @giselenascimentoadvogada